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OverviewChoveu a noite inteira. Não uma chuva decente, frontal, mas uma espécie de respiração húmida que se infiltrava pelas frestas da varanda e me irritava os ossos. A pedra ainda pinga. E eu, sem sono, sem remorso, só com aquela inquietação mansa de quem não sabe se sobreviveu à noite ou apenas não morreu o suficiente. Ontem à mesa, o silêncio era mais denso que o vinho. A Francesca falou pouco. Os olhos dela, sempre meio nublados, perscrutavam qualquer coisa em mim como se procurassem uma falha, um tremor, ou uma resposta que nunca prometi dar. Disse-me que voltava hoje. Ou talvez não tenha dito nada. Já não distingo o que se diz do que se deseja que tivesse sido dito. A Mariangela não apareceu. Nem uma mensagem. Nem uma ausência explícita. Só o vazio dela - esse sabe sempre chegar, pontual, quase elegante. A ausência dela tem cheiro. Um perfume seco, com notas de ironia e manjericão - um rasto que me encosta ao que nunca soube ser. Saí antes da luz. Levei o casaco castanho, o das noites frias em Ferrara, aquele que ela uma vez me arrancou no corredor de um hotel sem nome. Estava calor, mas precisei dele. Era como se o tecido soubesse coisas que a pele já esqueceu. Sentei-me na rocha onde o mar bate torto, ao fundo da escadaria velha. Ouvi as gaivotas a mentirem ao céu e senti o sal nos tornozelos, como quem leva pontapés de uma infância que se perdeu entre aeroportos. Tinha o papel no bolso. A carta que escrevi para ela e não tive coragem de enviar. Estúpida. Bela. Crua. ""Se vieres, tenho vinho e o meu silêncio inteiro. Se não vieres, que o vinho me cale. A Francesca tem a noite, tu tens a dúvida. Escolhe. Ou deixa-me cair."" Lancei o papel ao mar dentro de um frasco. Um gesto de postal ilustrado, eu sei. Mas precisei. Precisava de fingir que ainda havia destino, corrente... acaso. Que alguma coisa me levaria de volta a mim mesmo. Depois ouvi o som de um carro a subir: um motor antigo; um cheiro a diesel; e a terra molhada presa às rodas. Não me virei. Aprendi que o que vem, vem sempre quando já não esperamos. Ou quando já não importa. Hoje sei: não há mais disfarces. Só restam os restos. O corpo, a memória e o cansaço. O nome Leilac, já não me protege. Já todos sabem quem eu sou. Deixei que soubessem, advogados, juízes, espiões, amantes... todos. Talvez o último disfarce seja escrever. Ou mentir que ainda sei amar. Full Product DetailsAuthor: Leilac LeamasPublisher: Leilac Leamas Imprint: Leilac Leamas Volume: 6 Dimensions: Width: 15.20cm , Height: 1.10cm , Length: 22.90cm Weight: 0.268kg ISBN: 9798230664185Pages: 196 Publication Date: 15 April 2025 Audience: General/trade , General Format: Paperback Publisher's Status: Active Availability: Available To Order ![]() We have confirmation that this item is in stock with the supplier. It will be ordered in for you and dispatched immediately. Language: Portuguese Table of ContentsReviewsAuthor InformationTab Content 6Author Website:Countries AvailableAll regions |